PARA PREFEITO, ESTÁ TUDO BEM!
Chegamos a Croatá aproximadamente às 17:00 horas. Havíamos sido informados que nessa cidade ocorreria a reunião da Associação dos Municípios da Ibiapaba (AMI), com a presença de todos os prefeitos da região. Estávamos em um número expressivo de dentistas. Tínhamos representantes de todos os municípios da Serra.
Colocamos nossas camisas de greve e abrimos nossas faixas em frente à prefeitura daquela cidade. Esperamos a chegada dos prefeitos, que insistiam em demorar. Quem não tardou foi a polícia, que chegou logo depois de nós.
Duas horas depois, os prefeitos começaram a aparecer em seus confortáveis carros. Senhores e senhoras elegantes, bem afeiçoados, trajando belas roupas. Acenavam em nossa direção simpaticamente com seus belos sorrisos. Sorrisos esses cuja probabilidade de terem sido cuidados nos postos de saúde de que tanto se orgulham é praticamente nula.
Ficou combinado que eles se reuniriam sem nossa presença em um primeiro momento, depois, nos chamariam. A fome bateu, e um colega mais corajoso solicitou ao pessoal que preparava o lanche de suas excelências para que nos desse um pouco daquela comida. Felizmente fomos atendidos. Aqueles refrigerantes e salgadinhos nos ajudaram a ficar de pé por mais algumas horas, quando finalmente a dois de nós foi dada a oportunidade de entrar na reunião.
Na sala com os prefeitos, após reapresentarmos nossas reivindicações, foi-nos dito que nada de concreto poderia ser proposto naquele momento; que teríamos ainda de esperar mais um mês para que uma posição fosse tomada. "Sendo assim, seremos obrigados a continuar nossa paralisação ", falou nosso sindicalista. De longe, pôde ser ouvida a seguinte declaração de um dos prefeitos: "POR MIM, TUDO BEM". Frase curta, direta e desastrosa, digna de um 11 de setembro, data da reunião.
Um outro prefeito, vendo a tamanha infelicidade da frase de seu colega, tentou contornar aquele embaraço, pedindo-nos que voltássemos a trabalhar: " não por nós, mas pela população, que tanto precisa".
É a população, que tanto precisa, que gostaríamos de nos dirigir neste momento.
FUNÇÃO DO CIRURGIÃO-DENTISTA E O PORQUÊ DE CONTINUARMOS EM GREVE.
Antes de recontarmos nossa situação enquanto servidores municipais, acreditamos ser importante aproveitarmos este espaço para falar da função do dentista, pois entendemos que só uma população que entende o que é de fato SAÚDE BUCAL poderá compreender o quão histórico é o movimento que os cirurgiões-dentistas da Serra da Ibiapaba estão realizando.
Alguém poderia dizer: dentista é aquele que cuida dos dentes das pessoas. Comentário correto, porém, muitíssimo INCOMPLETO. Outros, com maior grau de entendimento, diriam que a função do dentista é promover a saúde bucal. É uma resposta bem melhor, desde que se tenha em mente a relação da saúde bucal com o resto do corpo.
A cavidade bucal, muitas vezes, serve de janela para o corpo. É possível, através de sinais encontrados na boca, diagnosticarmos diversas doenças de maneira precoce. A consistência da saliva; a coloração da gengiva, lábios, língua e garganta; exames radiográficos de rotina; tudo isso nos permite reconhecer em nossos pacientes patologias que estão presentes e que, de outro modo, só seriam percebidas quando a situação estivesse bem mais grave. Em campanhas que realizamos nos postos, temos diagnosticado várias doenças e retirado várias lesões bucais que, se lá permanecessem, mais cedo ou mais tarde se tornariam cânceres.
Claro, tudo isso só é possível com um profissional bem preparado, que procura estar atualizado. Agora, como pode um dentista estar em constante estudo se os cursos em nossa área, muitas vezes, são superiores aos salários que recebemos das prefeituras da Serra da Ibiapaba?
Para um correto diagnóstico, faz-se necessário um exame detalhado da boca, não aquele feito às pressas que alguns gestores querem que sejam feitos para que se atenda um número maior de pessoas em período de eleição; nem aqueles feitos por profissionais que precisam correr para seus consultórios particulares, já que seu salário da prefeitura não está dando para pagar suas contas.
Pacientes diabéticos e hipertensos respondem melhor ao tratamento médico quando acompanhados periodicamente pelo dentista. Partos prematuros e abortos podem ser consequência de problemas que foram iniciados por um grupo de bactérias presente nas gengivas das gestantes. É por isso que reservamos vários dias nos mês para atender a esses grupos.
Antes de se realizar transplantes, cirurgias cardíacas, radioterapias e uma porção de outros procedimentos, o paciente deve estar em dia com a saúde bucal, caso contrário, há uma grande chance de complicações.
Quanto aos dentes, órgãos que tanto estudamos e de onde veio o nome de nossa amada profissão, eles são mais importantes do que tendemos a imaginar. São importantíssimos na alimentação e fonação; são eles que dão forma à nossa boca e ao rosto de um modo geral. Os dentes são os protagonistas do sorriso; este, nosso cartão de visita. Um belo sorriso abre portas.
A odontologia tem avançado. Vários são os métodos preventivos e terapêuticos desenvolvidos. Se o dente está cariado, faz-se restauração; se atingiu a parte viva, existe canal; se houve a necessidade de extração, confecciona-se uma prótese; caso a gengiva esteja infeccionada, existem meios de torná-la saudável; se por algum motivo os dentes estão tortos, podem ser corrigidos.
O controle da dor em cirurgias sempre foi uma busca nossa. Não foi à toa que a primeira intervenção cirúrgica com anestesia geral, uma retirada de um tumor no pescoço de um rapaz em 1846, foi possível graças às técnicas desenvolvidas por dois dentistas, William Morton e Horace Wells, que revolucionaram a história da medicina. De lá pra cá, as técnicas foram avançando, e dor na cadeira do dentista tem se tornado coisa do passado; coisa que as novas gerações desconhecem.
Alguém mais desavisado poderia dizer: "tem problema não, doutor, é um dente lá de trás; nem dá pra ver". Porém, uma boca nunca é a mesma depois que um dentinho se vai e não é reposto de algum modo. Os dentes vizinhos tendem a entortar-se em direção ao espaço que ficou vazio; suas raízes ficam mais expostas, e uma sensibilidade começa a incomodar.
Às vezes, o organismo se reajusta, e os problemas cessam. Em outros casos, em especial quando se perde muitos dentes, a coisa complica mais: os elementos dentários que sobraram passam a exercer o papel dos que se foram, desgastam-se; o que muda toda a forma de mastigar, ocasionando dores que vão desde a região da cabeça a locais tão distantes quanto à coluna. Do ponto de vista estético, a falta dos dentes muda o rosto do paciente, e sua aparência fica envelhecida.
Durante nossa luta por uma maior valorização da odontologia na região da Ibiapaba, temos recebido muito carinho e apoio da população, que entende ser justa a nossa causa. Quando descobrem que nosso salário é em torno de 3 a 4 x menos o que eles achavam que nós recebíamos, eles se chocam: "eu monto minha barraquinha aqui, trabalho só de manhã e ganho mais que vocês", foi o que nos disse uma simpática senhora; "é só isso, doutor? prefiro continuar vendendo aqui minha cachacinha, ganho bem mais", foi outra frase que ouvimos.
Mais chocante ainda é saber que a desvalorização do nosso salário nas prefeituras chegou ao ponto de hoje nossa remuneração ser inferior ao preço mensal da faculdade. Investimento estranho, né? Nem é preciso entender tanto de matemática para ver que a conta não bate. Muitos gestores sabem tanto que a situação do dentista está precária que, para acalmar os ânimos dos profissionais, fazem acordos tácitos do tipo VOCÊ FINGE QUE TRABALHA; EU FINJO QUE PAGO! E mais uma vez quem sofre é a população.
Amigos da Ibiapaba, NÃO QUEREMOS FINGIR. Este movimento é formado por profissionais sérios e que amam sua profissão; que vestem a camisa do SUS e entendem que são vocês que pagam nosso salário. Defendemos que o usuário do posto de saúde merece o mesmo atendimento dos nossos pacientes do consultório particular.
Por incrível que pareça, chegamos a ouvir frases como esta: "nunca ouvi falar de ninguém que houvesse morrido por causa de dente". Quando algo assim é dito por alguém com pouca instrução e influência, é mais fácil de perdoar; mas quando uma TOLICE dessa natureza é proferida por um gestor, com o objetivo de diminuir a importância do nosso movimento e profissão, é de doer.
Os dentes são dotados de nervos, veias e artérias. Quando infectados, são uma porta de entrada para micro-organismo se instalarem em diversos órgãos do nosso corpo. TODOS OS DIAS MORREM PESSOAS POR COMPLICAÇÕES QUE TIVERAM INÍCIO EM PROBLEMAS BUCAIS.
O consultório do cirurgião-dentista é um local peculiar dentro de um posto de saúde. Diferente de qualquer outra sala de uma unidade básica de saúde, a sala do dentista é um centro cirúrgico.
Em nossa prática diária, fazemos procedimentos nos quais cortamos tecido mole e osso, removemos tecido patológico, drenamos material purulento, entramos em contato com saliva e sangue, estamos expostos a bactérias, fungos e vírus. Era de se esperar que o consultório odontológico fosse o ambiente mais limpo, mais bem cuidado e olhado com o maior respeito pelos gestores. Infelizmente, o que acontece é algo diametralmente oposto.
Quando solicitamos a instalação de um ar condicionado (já que o ventilador espalha micróbios) ou quando pedimos uma segunda pia para o consultório (para não lavarmos as mãos no mesmo local que lavamos os instrumentos contaminados) não se trata de um luxo : são condições mínimas para que o ambiente esteja preparado de modo que os procedimentos realizados não gerem contaminação nos pacientes e profissionais que estão naquela sala. Recusar-se a fazer atendimento clínico quando não há condições higiênicas mínimas é DEVER do dentista.
Devido à natureza de nosso trabalho, por lei, deveríamos receber um adicional de INSALUBRIDADE. Mesmo assim, ainda há municípios na Serra da Ibiapaba que insistem em não pagar esse adicional ou o fazem de maneira incorreta. A lei não está sendo respeitada. Ao contrário da frase proferida por aquele prefeito, NÃO ESTÁ NADA BEM. Não é possível a coisa estar bem quando a condição de trabalho está inadequada e o trabalhador, devido a não reposição inflacionária, está recebendo bem menos da metade do que era para receber.
Salários baixos, insalubridade desrespeitada e condições de trabalho não adequadas são realidades que precisamos mudar. Outro grande problema que encontramos na região é a grande quantidade de dentistas que não são concursados; são apenas contratados e com um vínculo precário. Devido à precariedade desses contratos, há relatos de intimidações por parte das lideranças dos municípios para que nossos colegas não participem do nosso movimento. Todo aquele CORONELISMO, que acreditávamos que havia acabado nos anos 80, parece continuar a existir na região.
Queremos deixar claro que o movimento DENTISTAS DA IBIAPABA não tem um caráter partidário. Na verdade, o que queremos é construir com os gestores uma melhor promoção da saúde bucal. Queremos sair do blá blá blá das campanhas eleitorais e efetivamente concretizar uma melhoria nas ações de saúde, que hoje estão bem problemáticas.
Esperamos que a AMI, que foneticamente lembra uma conjugação do verbo AMAR, possa cumprir sua missão de melhor cuidar do nosso povo; afinal, QUEM AMA, CUIDA! Que ela não sirva de um meio onde um prefeito ensina ESQUEMAS para o outro; nem de CARTEL onde o salário dos profissionais são nivelados por baixo.
Sem dúvida, as conquistas que alcançarão os dentistas terão como maior beneficiada a população a quem servimos, pois será atendida em melhores consultórios, com material adequado e com profissionais mais motivados. Continuaremos a fazer um movimento de caráter ordeiro, pacífico e democrático. Porém, sem abrirmos mão do que nos é de direito.
.jpg)
